Ele tinha 6 anos quando seu irmão mais velho pegou a caixa onde eles guardavam os carrinhos de ferro, agachou-se na altura do caçula e falou “vem, o mano vai te mostrar uma brincadeira” e andou em direção à porta da campainha da casa. Desceu os 3 degraus, largou a caixa no chão e apontou para a canaleta de cimento que separava os largos degraus que levavam à garagem da grama do quintal e falou “desce pela escada, vai tirando as folhas e sujeiras da canaleta depois volta aqui” o garotinho, que fazia tudo o que o irmão pedia – até buscar água na cozinha – desceu correndo pela canaleta mesmo e empurrando as folhas para a grama, subiu de novo e parou, de pé, ao lado da caixa. O irmão pegou um carrinho vermelho meio descascado e disse “escolhe um pra ti” o garoto pegou um pequeno caminhão preto mais pesado que o normal – caminhão que ele levaria consigo a cada mudança até os 40 anos, quando o brinquedo seria perdido nas caixas da oitava mudança de sua vida. O irmão mais velho segurou os dois carrinhos,um em cada mão, e os apoiou no topo da canaleta, olhou para o mais novo e enumerou as regras “o carrinho que chegar primeiro lá embaixo ganha. Se cair pra fora da canaleta você pode botar de volta duas vezes, na terceira você perde automaticamente.” E soltou. O caminhão preto, estrategicamente do lado da grama desceu rápido e fez a primeira curva para a esquerda com velocidade, na primeira curva para a direita as rodinhas escorregaram um pouco e subiram pela borda até o caminhão tombar para a grama. Ele estava ainda parado ao lado da caixa e antes de pensar em correr para devolver o seu carrinho à pista o pequeno carro vermelho saltava do fim da canaleta para a grama e o irmão mais velho pulava e socava o ar comemorando a Vitória.

Aquela brincadeira se repetiria inúmeras vezes durante a infância dele. Antes e depois do irmão ir embora de casa para estudar. Ele brincaria de carrinho na canaleta com amigos, primos e, muitas vezes, também sozinho. Não lembra quantos anos tinha quando brincou disso com o irmão pela última vez com o brilho no olho de criança. Soltaria carrinhos na pista improvisada junto ao irmão já depois de crescidos, com gosto de nostalgia, para lembrar os velhos tempos. Mas nunca mais aquela combinação de carrinhos e canaleta faria seu coração acelerar e traria um sorriso gostoso como o de quando era criança ao seu rosto. Por vezes abrirá, em momentos difíceis, o armário em que o caminhão estava guardado junto com outras lembranças, o seguraria, sentiria o cheiro do metal enferrujado e lembraria com distância e carinho daquele tempo. O caminhãozinho tornara-se uma fuga nas noites insônes – já não buscava sentir aquela alegria da infância ao apertar o velho brinquedo na mão. Aos 29 anos – seu pai já havia vendido a casa onde os irmãos brincavam na canaleta e aquela brincadeira nunca mais iria se repetir. Ele viajara para visitar o irmão – a sobrinha, na verdade. Dessa vez tinha tido uma ideia e levara consigo 4 canetas coloridas para quadro branco. Quando ficou sozinho no apartamento com a menina, chamou-a para perto da enorme janela da sala, puxou a cortina para o lado, agachou-se na altura da pequena Aurora, tirou as canetas do bolso e entregou uma vermelha e uma verde para a menina de olhos curiosos. Destampou a caneta preta, olhou para a menina, olhou para o vidro, olhou para caneta e desenhou na janela um personagem chinês que aprendera com seu pai na infância. Aurora sorria com cumplicidade sabendo que seu pai não iria ficar contente com aquilo. O tio então falou baixinho “desenha um amiguinho pro Chinês, o tio deixa.” A menina sorriu com o som da tampa da caneta vermelha abrindo. O tio olhou para ela e piscou um olho incentivador. A gargalhada alegre da menina ao pintar o primeiro risco vermelho no vidro aqueceu o coração do tio. Aos 29 anos ele reencontrara a canaleta. A alegria da sobrinha o fez sorrir e ele voltou a desenhar com a caneta preta como o caminhão enquanto Aurora rabiscava o vidro com a caneta vermelha como o carrinho do irmão. O tio não sabe o que a garota sentiu naquele dia, mas as gargalhadas divertidas que a garota dava enquanto ele corria buscar papel higiênico e alcool para limpar as janelas antes do irmão chegar foi como se visse o irmão pulando e vibrando com a vitória naquela primeira corrida com os carrinhos na canaleta. Ao chegar em casa, no fim daquele fim de semana, as canetas foram guardadas no armário das lembranças ao lado do pequeno caminhão preto – e após o caminhão desaparecer numa mudança o cheiro das canetas e a lembrança das gargalhadas da sobrinha riscando sorridente as janelas seriam sua companhia nas madrugadas insônes.