Casados há quase 20 anos. Dois filhos, um
deles já na faculdade, o outro deitado no
banco de trás, dormindo coberto por um
edredom surrado das tartarugas ninja. Era
início de junho e o frio aumentava enquanto
o carro subia a serra, para onde eles
voltavam depois de um fim de semana
visitando o filho mais velho. A luz azul do
aparelho de som, sintonizado em alguma
rádio distante que tocava mais interferência
do que música, quebrava a escuridão que
tomava conta do interior abafado do carro.
O asfalto correndo por baixo das rodas era
marcado por buracos. A sinalização não
existia mais. Do lado direito, a encosta de
um morro. Do lado esquerdo o acostamento
era curto e logo dava lugar a um barranco.
Lá em baixo os postes iluminavam as ruas
vazias da madrugada de um bairro afastado
da cidade. Na sua frente um caminhão
andando devagar força o veículo a diminuir
a velocidade.
“Acho que dá tempo de ultrapassar antes da
curva”, pensou ele, pé no acelerador e mão
no câmbio para mudar a marcha. O carro
invade a pista da esquerda e fica lado a lado
com o caminhão. Dois faróis no sentido
contrário o fazem perceber que estava
errado. Caminhão à frente, caminhão ao
lado direito, e o barranco a sua esquerda.
“Vou ter que puxar para o acostamento”. O
coração acelerando tanto quanto o carro
segundos antes. O volante virando pra
esquerda. A roda traseira saindo do
acostamento, patinando na grama, a
centímetros do barranco.

O homem já não via nada disso. Via o
quintal de casa. As araucárias, os
eucaliptos e um álamo gigantesco. Era
outono. A mulher, os dois filhos ainda
pequenos e o cachorro da família
brincavam pulando em montes
alaranjados de folhas secas.
Quando voltou a si o carro estava
novamente na estrada, atrás do
caminhão. O interior do veículo estava
mais abafado do que antes. Apesar da
interferência do rádio e da respiração
pesada dos dois, havia um silêncio.
Segurava o volante com força, para
disfarçar as mãos que tremiam. A criança
no banco de trás ainda dormia, apesar
dos solavancos do carro. A mulher olhava
fixamente para frente.
As letras da placa do caminhão eram,
coincidentemente, MGV. As iniciais do
filho mais velho. Era nele que ela
pensava. Como teria sido se a roda
tivesse patinado um pouco mais, tivesse
escorregado um pouco mais perto do
barranco. Não pensou nela, na faculdade
que não fez, no negócio que não
começou, na casa que não reformou.
Pensou nos filhos. Devagar ela virou o
pescoço e deu uma olhada na criança
enrolada no edredom. Respirou fundo,
aliviada. As mãos ainda doloridas por ter
apertado o acento do banco a lembraram
de onde estava. “Vamos parar no
próximo posto?” perguntou ela para o
marido.