No frio do inverno da serra catarinense, o velho senhor coloca mais um pedaço de madeira clara no fogão a lenha. Molha a mão na pia da cozinha e chacoalha a água que evapora assim que toca a chapa quente. “Agora já dá de colocar os pinhão”. A frase — dita assim mesmo, sem concordância — pontua o ritmo do final da tarde do domingo. As palavras saem devagar, como se ele quisesse aproveitar o momento. O velho conhece bem o ritual. Os pinhões, trazidos pelo vizinho da frente logo após o almoço, são tirados do banquinho de madeira, agora ocupado pelo neto, para serem espalhados na chapa do fogão. Os dois, velho e moço, aproveitam cada segundo sem falar nada. O único som que se ouve é do pinhão estalando no calor.

Há cinco anos essa cena se repetia todos os domingos de frio. Agora não é mais tão frequente. O neto mora longe, em outra cidade, e os encontros ficaram limitados aos feriados prolongados. Mesmo assim, sempre que podem, repetem o ritual. Às cinco da tarde o neto chega, acompanhado dos pais, para encontrar o avô sentado no segundo degrau da porta da frente da velha casa de madeira. O abraço tem o cheiro do cigarro que o avô insiste em fumar, mesmo aos 76 anos. Misturado à nicotina há o mofo das roupas guardadas nos armários antigos. Enquanto o sol do horário de verão arde, eles entram para a cozinha.

O neto senta numa das cadeiras bambas e o senhor vai para o fogão. A água já está quente, o pó do café está na pia, o pacote de bolacha maria em cima da mesa. Na televisão, o jogo do Flamengo. O neto torcedor do Santos reclama. O avô responde. “Pode colocar na band, o vô não tá assistindo.”. O cheiro do café começa a tomar conta da cozinha. O avô lentamente pega as xícaras no armarinho e as coloca em cima da mesa. O bolo de laranja ganha o centro da toalha. Todos sentam. O velho senhor na cadeira da ponta. O neto ao lado. De novo contrariando o bom senso o senhor enche a xícara de vidro com café preto até a borda e pega o açucareiro, devagar. Uma colher…

Duas colheres…

Três colheres…

Na quarta é só uma pontinha de açúcar. A bebida extremamente doce é ruim para saúde do velho — assim como o cigarro.

Já com a mesa limpa, o senhor levanta e abre as gavetas, uma por uma, atrás do fubá. O neto corre para a sala e fica de joelhos em cima do sofá olhando pela janela. Na cozinha abre-se uma janela e soa um assobia alto. Os galhos das árvores balançam. Mais um assobio e um punhado de fubá voa pela janela. Mais galhos balançam e uns cinco ou seis passarinhos chegam, tímidos, para comer a farinha de milho. O senhor continua assobiando, mais baixo, como quem conversa com as aves. Essa parte do ritual não é exclusividade dos domingos. Todos os dias o velho senhor vai até a janela e se encontra com os pássaros amarelos e verdes. É um jeito que ele encontrou para passar o tempo.

Mas não é só o encontro diário com seus amigos voadores que o ajudam a passar os dias solitários. Um violão com o braço um pouco torto e cordas enferrujadas, livros de ficção científica — só de Isaac Asimov são 12 títulos –, revistas UFO e um machado ao lado da pilha de tocos de madeira fazem parte da agenda de compromissos do solitário senhor. Ele não trabalha mais. Vendeu o táxi faz mais de duas décadas. Vive do baixo valor da aposentadoria e da ajuda dos dois filhos e da filha adotiva — outros três herdeiros morreram ainda bebês.

O que lhe resta é esperar. Ele mesmo diz: “estou esperando para ir encontrar a tua avó”. A frase dói no coração do neto que, mesmo relutante, entende o avô. A esposa faleceu em 1998. Há 17 anos o senhor espera. E não esconde de ninguém que é isso o que lhe resta na vida, desde então suas companhias são o violão, a leitura e os cigarros. Mesmo sabendo que o avô não gostaria de esperar muito mais tempo o garoto torce para que Isaac Asimov tenha escrito muitos livros.