Era um daqueles restaurantes que os pais deles gostavam. Ele aos 14 e ela aos 13 não tinham direito à opinião nessas escolhas dentro daquelas famílias tradicionais de mamãe que fica em casa, papai que ganha dinheiro e filhinhos que estudam e obedecem – com o adicional de ser uma mocinha que se dá o respeito para ela. Estavam de férias no litoral e os pais colegas da alta sociedade interiorana decidiram se encontrar. As mulheres se gostavam e – até onde era do conhecimento dos adultos – as crianças se detestavam, mas toleravam um ao outro.

Até a organização para sentarem-se à mesa era ordeira. Homens um de frente para o outro nas cadeiras próximas às pontas, mulheres uma de frente para a outra próximas à outra ponta e as crianças no meio dos adultos para que a conversa entre os sexos não se misturasse demais – homens falavam de coisas sérias, óbvio, mulheres falavam frivolidades, com certeza. O irmão mais novo da menina brincava no parquinho sob a vigilância distante e atenta da mãe – o pai ficava “de olho, pode deixar.” As crianças passaram a janta inteira em silêncio. Ele olhava para ela por alguns segundos e logo desviava o olhar prestando atenção à alguma das conversas dos adultos – os assuntos das mulheres o atraíam mais, os homens falavam de carros, dinheiro e problemas no trabalho, só assuntos que o entediavam.

Como era o padrão para as crianças, seus pais não faziam ideia do que se passava na vida dos filhos. Os dois nunca se detestaram, até gostavam de brincar juntos e trocavam aqui e ali alguns torpedos no celular. Ele não sabia se ela já havia dado seu primeiro beijo – já havia beijado três meninos, todos mais velhos, um havia lhe dado uma aliança. Ele começara a se interessar de fato pela garota há alguns meses. Da mesma forma, o interesse crescente dela a fazia se perguntar se ele já dera seu primeiro beijo – havia beijado uma só garota, ex-namorada de seu melhor amigo, com quem teve um namorico curto e logo finalizado pela garota, mais velha e a fim de viver algo além do que um menino mais novo podia oferecer. Mas, a diferença: ela sufocava qualquer indício de interesse que sentisse pelo garoto – que queria,na verdade, achar meio chato e feio.

Numa das olhadelas que ele deu na garota a encontrou bufando de tédio e procurando o irmão com os olhos. Talvez fosse um bom momento para brincar com ela e deixá-la desconcertada mas menos entediada. O garoto empurrou seu pé direito dentro do all star vermelho para baixo e deslizou-o lentamente para frente até sentir que a ponta do tênis havia encostado no adidas roxo da garota. Notou o leve salto que ela deu na cadeira quando sentiu o toque e deslizou o pé mais pra frente até que a ponta do seu dedão estivesse no calcanhar esquerdo da garota e então levantou devagar o pé arrastando a ponta do all star pela panturrilha dela, e a olhando como se pedisse desculpas antecipadas pelos 10…

15…

30 mil reais de dívida que fizera no cartão de crédito da esposa até parar o pé próximo do joelho. Nesse momento a garota o encarou de volta, a diferença se desfez por um instante, e o garoto deixou de ser tão feio. Tornou-se quase interessante. Ele não esperava o retorno do olhar e aquele par de olhos verdes com o miolo castanho olhando no fundo de seus olhos, suplicando perdão por tê-lo abandonado quando descobriu o transtorno bipolar o pegou de surpresa. Gotas de suor escorreram de suas axilas, estalou os dedos da mão esquerda, girou a futura aliança dourada no anelar esquerdo como fazia nervosamente durante as raras mas intensas brigas e respirou fundo enquanto seu coração acelerava nos cinco segundos –  que duraram aproximadamente cinco horas, para ele – em que os olhares das duas crianças viajaram juntos a um futuro possivel. A garota não se desconcertou, fixou o olhar nas pupilas dele e o encarou séria e desafiadora enquanto gotas de suor escorriam entre seu par de seios bem desenvolvidos para a idade – o que inspirava alguns apelidos e insegurança – ainda com os olhares presos um no outro ela mordeu o lábio inferior, não como quem provoca, mas como quem usa os dentes para segurar as lágrimas que insistiam  em lhe borrar a visão ao ler o diagnóstico da doença mental que aprosionaria o marido à uma realidade instável e que a colocava na desconfortável posição de escolher se dividiria ou não aquela prisão com o homem com quem convivia desde a adolescência.

 A insistência do olhar foi o suficiente para que o garoto cogitasse ter conquistado, se não o interesse, a curiosidade da garota. Agora ela também começava a se interessar por ele – apesar de ainda o achar um pouco feio e chato – o que mudaria nos próximos anos. Ele agora estava completamente apaixonado e assim ficaria pelas próximas duas horas – ou nas próximas duas décadas . Ao se despedirem, após o aperto de mão protocolar em quem seria seu sogro e o beijinho em quem mais demoraria a aceitar o casamento da filha  o abraço entre os jovens foi mais demorado e o beijinho de despedida deixou as jovens bocas generosamente mais próximas do que ficariam no dia em que ela decidiria afastar-se da prisão mental que seria a morada definitiva do marido.